sábado, 29 de junho de 2013

Há 30 anos, Brizola já concedia passe livre no Rio

A concretização da proposta do passe livre para estudanrtes, como ecoam as manifestações de rua por todo o país, poderá ser bem mais simples, se os governos e prefeituras observarem a experiência de Leonel Brizola no Estado do Rio de Janeiro, adotada há quase 30 anos. Aconteceu logo depois que assumiu pela primeira vez o Palácio Guanabara, em 1983, quando ele também iniciou seu programa de educação integral, os CIEPs, empolgando todo um país que então reencontrava a democracia.
Como foi feita? Brizola, pura e simplesmente, determinou, através de decreto, que os estudantes uniformizados tinham passe livre em qualquer cidade do Estado. Os alunos não precisavam sequer mostrar a carteirinha, pois o uniforme escolar já constituía uma prova em si de sua condição. "Houve alguma chiadeira, mas nenhuma empresa, de ônibus quebrou por causa disso", lembra hoje o presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, que foi depois secretário dos Transportes da prefeitura do Rio de Janeiro. Lupi reconhece que, nos dias atuais, a situação é mais complexa porque a maioria dos estudantes já não usa uniforme, mas nem por isso se torna inviável já que, com a internet, é fácoil cadastrar e emitir comprovantes estudantis.
Lupi ainda lembrou a necessidade dos governantes, sobretudo estaduais e locais, a terem uma visão antecipada dos problemas da população, como o fez Brizola, há 30 anos, que não precisou ser empurrado por manifestação nem de quebra-quebra para instituir o passe livre e outras realizações importantes, como os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública). Nestes centros com capacidade para mil alunos, dos quais mais de 500 foram construídos nos dois mandatos de Brizola no Rio (1983-1986 e 1990-1993), o aluno chegava à escola às sete horas da manhã e só saía às cinco da tarde, de banho tomado e depois de ter aulas regulares, deveres de casa assistidos e atividade extracurrilar como esportes, dança, música, lingua estrangeira etc.
Veja o vídeo do CIEP
Nove anos sem Brizola
O que Brizola diria destas manifestações
O problema foi que os CIEPs sofreram uma campanha tão violenta por parte dos meios de comunciação, que não conseguiram perdurar nas administrações que sucederam Brizola. Estas, pressionadas por aquelas forças poderosas, praticamente abandonaram o projeto, que hoje se revela cada vez mais imprescindível, tanto do ponto de vista social como para o desenvolvimento integral do país.
- É o caso de se perguntar, porque essas forças hoje,que dizem apoiar os manifestantes que ganham as ruas, não fazem uma autocrítica e assuma a defesa do passe livre e da educação integral? O Brizola provou que elas são propostas viáveis - concluiu o presidente do PDT.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Kolecza: O tesouro que ele nos legou

 
Por Carlos Alberto Kolecza - O legado ideológico de Leonel Brizola repousa nas camadas ainda lúcidas da entrevada memória brasileira à espera de um lampejo do instinto de sobrevivência. Não pode ser incontornável a perda da consciência de dignidade de um povo.
Contra todas as expectativas agourentas, aqui estamos, obrigados à reflexão impensável de como será o Trabalhismo sem Brizola. Brizola não chegou lá, mas graças à sua clarividência e determinação somos os herdeiros do maior tesouro político do Brasil, a doutrina trabalhista. Só por isso, Brizola tem direito a figurar na galeria dos patronos de formação da consciência de cidadania. Depende de nós a preservação do acervo vivo de pensamentos e sentimentos que ainda fará o Brasil acontecer como nação de todos os brasileiros.
O Trabalhismo de Getúlio, Pasqualini, Jango, Brizola, Darcy e milhões de anônimos, projetou o Brasil na modernidade, e ainda pode evitar que afunde na barbárie. Há, porém, um problema além de nossas possibilidades. O patrimônio de idéias de nossos pensadores e as realizações de nossos estadistas de nada vale contra a intenção das elites de consumarem o apartheid social.
A proibição secreta
Desde 64 o Trabalhismo está proibido de subir a rampa, uma das tantas decisões secretas dos operadores da "máquina de distribuição de renda para cima" (1), o sistema multissecular de privilégios e injustiças causador de um dos mais perversos índices de exclusão social do mundo. Contra o trabalhismo movem-se sempre os fantoches dos responsáveis pela desintegração social, a perda do sentido de vida coletiva. Sabem, até mais que nós, do que é capaz o Trabalhismo para salvar outro tesouro em perigo, nossa identidade de povo. Além de nós, alguém mais sabe contra quem foi o golpe? Contra mais ninguém.
As forças que arrastaram Getúlio ao suicídio e derrubaram Jango apaisanaram-se e prolificaram. Em vez de metralhadoras disparam teorias recauchutadas dos canudos de seus doutorados. Nas casamatas VIPs da sapiência, fabricaram um repelente spray antipovão - o populismo - , sofisticaram o servilismo e legitimaram a exclusão. Perfumaram com fragrâncias contrabandeadas os preconceitos mais perversos e as discriminações mais iníquas. Transplantaram para os salões da política o manual de bons modos da casa-grande como prêmio à subserviência. Aposentaram os limpa-botas e promoveram a gurus os office-boys dos barões da trambicagem financeira.
Solitário, de peito aberto como sempre, Brizola desnudou o choque de neocolonização que homologou a quebra da estratégia de desenvolvimento, o retrocesso dos avanços sociais, a leiloagem do interesse nacional e a revogação do bem comum. Carta Testamento em punho, amaldiçoou a promessa sinistra de FHC do fim da Era Vargas, o desmonte peça por peça do imenso cabedal trabalhista de ações e desenvolvimento e de solidarismo. Poucos perceberam, na trama lesa-pátria, a proscrição do trabalhismo como projeto - e único - de desenvolvimento com justiça social.
Estamos proibidos de influir nas decisões porque somos inconfiáveis aos artífices do sistema informal de castas em silenciosa implantação, que rebaixa a maioria à categoria de subcidadãos. Querem nos impedir de denunciar a fabricação de ignorância e intolerância, as matérias primas da desestabilização social. O trabalhismo funde a justa indignação diante das mazelas da desigualdade e a inabalável convicção de que um país com tantos recursos tem que dar certo. A discriminação que sofre é a extensão da que aprisiona o Brasil na dependência e empurra o brasileiro para a marginalidade.
A estética da segregação
Tentam nos ferir no que temos de mais forte, a autenticidade. Sim, somos o partido dos Agenor, dos João e José, dos Silva, das Maria, Margareth e Filomena, e nos orgulhamos de filiados, militantes e eleitores tão ilustres. Não somos "meio antigos", viemos de longe. Benditos representantes dos milhões de deserdados que confiam em nós porque ouviram falar de Getúlio, Jango e Brizola. Não podemos trair essa confiança.
De que lado estão os que gratuitamente debocham dos trabalhistas e brizolistas em nome de um código estético segregacionista? Trocaram a ética pela estética? Ou não é tão gratuitamente assim que debocham? Saibam ou não, estão do lado dos 82 coronéis do Exército que derrubaram o ministro do Trabalho em 1954 sob a alegação de que a duplicação do salário mínimo esvaziaria os quartéis. Precisam dos Agenor e das Filomena para destilar racismo social assim como os coronéis, generais em 64, necessitavam de soldados desnutridos e analfabetos para dar ordens absurdas. Em tempo, o presidente que os generais derrubaram em 64 era o ministro do Trabalho em 54: João Goulart.
Temos que ser sinceros com os que pretendem juntar-se a nós. Devem saber de nossa condição de malsinados e das provações que os esperam. Há lugar para tudo e todos no jogo jogado lá em cima, menos para um partido nacionalista. Repararam como Cristovam Buarque foi ridicularizado nas entrevistas durante a campanha presidencial? Assistiram à reprise do deboche do "candidato de uma nota só" por parte de um apresentador global? Por que a alergia da grande mídia à educação como prioridade? A direita ditabranda não tem mais pudor de mostrar a cara no jornalismo. Quem sabe não é esse o nosso caminho da roça?
A deserção da classe média
A proscrição do Trabalhismo coincide com o colapso induzido da identificação da classe média com os valores brasileiros, primeiro estágio da ruptura dos laços de solidariedade social. O medo torra os neurônios e envenena os hormônios da classe média. Temerosa da perda de status com a ascensão de novos contingentes, ela se conforma com a função de massa de manobra do terrorismo emocional da grande mídia. O casamento do conservadorismo da classe média com o reacionarismo das elites turbinou a estratégia dos Estados Unidos de dizimar os movimentos de emancipação do Terceiro Mundo com golpes militares.
De lá para ca, trancafiada em sua gaiola de latão dourado, presa aos fetiches primeiro-mundistas, cega e surda ao que acontece à sua volta, a classe média impermeabilizou-se ao diálogo. Desertou do Brasil. Não sente falta de debate público e renunciou ao livre pensamento. Esconde que acredita na eficácia da tortura e na terapia de grupo dos esquadrões de morte, desde que aplicadas exclusivamente nas vilas e favelas. Não por acaso a direita semeia e colhe a super safra da discriminação dos pobres nos espaços interditados ao trabalhismo.
Não dá pé a gosma de preconceitos e discriminações em que bóia a classe média à procura de onde se agarrar. Cúmplice e também vítima da fabricação em massa de ignorância, mete a mão em qualquer arapuca política. Vibrou com o Homem da Vassoura, atirou-se nos braços do Caçador de Marajás, encantou-se com o charme "intelectual" de FHC, por um triz não votou na governadora do Estado campeão de analfabetismo. Sempre disponível a porra-louquices, leiloaria a Amazônia em troca de uma passagem a Disneylândia.
Nacionalismo? Coisa de museu. Interesse nacional? Desde que a Rede Globo diga qual. Espírito público? O que é? Integridade? Tem a ver com propriedade? Educação acima de tudo? Desde que não se gaste com escolas e professores. Bem comum? O meu. Quinze anos antes, a classe média estava pronta para a farra da privatização em troca de um celular. A classe média é o gato que ruge contra as propostas de integração entre o Brasil Legal e o Brasil Real.
O muro da intolerância
A desgraça de brasileiro desconfiar um do outro respinga do mal-estar da classe média com o Brasil a não ser com o luxo da empregada "de preferência que durma no emprego". Secou o sentimento de pertencimento a um mesmo destino. Ela, que deveria dar o exemplo, para cima e para baixo, deixou de se reconhecer como elo de coesão social. Camufla o racismo na reação à cota e disfarça a aprovação a campanhas genocidas contra pobres, índios e adolescentes. Qualquer idéia maluca encontra espaço no travesseiro da classe média. Após a reeleição, a análise da vantagem eleitoral de Lula no Nordeste, uma formadora de opinião global deu o bote no ar: "Não está na hora de separar?" Foi um arroto do pensamento oculto enrustido nas leis secretas do apartheid.
Brizola trombou no muro de intolerância que substituiu as grades da truculência. Nele foi personalizada, a ferro e fogo, a mesma discriminação reservada a quem carrega na pele ou na origem social a tatuagem infame da rejeição. A determinação na luta pelas idéias republicanas de igualdade foi estigmatizada como radicalismo; a capacidade de priorizar o bem comum como demagogia; a lealdade à soberania nacional como xenofobia; o espírito público como caudilhismo; o estadista como estatista. A integridade inatacável nunca inspirou um gesto de reconhecimento de seus detratores.
Assim como Getúlio e Jango, foi vilipendiado por sua fidelidade ao ideal de justiça social, não por seus defeitos ou erros.
Os fios cruzados da história
Lembra de Brizola quem acredita no Brasil e vice-versa. Brasil e Brizola estão atados um ao outro pelos fios cruzados da história. Ao se tocar em um, o outro retesa. Era o xamã de um culto cívico que devolvia instantaneamente a alegria de viver num país maravilhoso e conviver com gente boa. Batizou-nos e crismou-nos na crença de que podíamos com nossos braços e nossa inteligência colocar o Brasil nos trilhos sem pedir benção ou licença de fora. Oficiava a fé sagrada sem a qual nenhum povo constrói o direito de assentar sua originalidade entre os demais.
Parecia um ser mitológico capaz de prodígios impossível e de provar que outros tantos estavam ao nosso alcance desde que confiássemos em nós mesmos.
Olho no olho, reacendia em volta o sentimento perdido de irmandade. A reação de quem chegava era de assuntar porque ninguém mais falava coisas tão simples e verdadeiras. Com o tempo e por conta própria descobríamos que a verdade é o bem público mais escamoteado do Brasil. A película de democracia encobre a injustiça de exclusão, inclusive do Trabalhismo. Não havia diferença entre o que dizia e o que fazia. Atrasava um compromisso quando nos sentia em dúvida e seus olhos faiscavam ao formar a roda de pensação.
Nasceu com um defeito - não tinha medo. Dobrou os chefes militares na Legalidade mas naquele momento os donos do poder decidiram jamais sentar-se com ele para acertar um pacto social de inclusão. A fio de baioneta, tiveram duas décadas de prazo para ossificar o imaginário da exclusão. A pirâmide social rachou de alto a baixo e a pergunta dele bate forte na consciência: por que com tanta riqueza à vista o Brasil não dá certo?
O Mandato
Já lamentamos o suficiente que ele não tenha chegado aonde queríamos. Caímos na real, perdemos o grande mensageiro, não a mensagem. O Trabalhismo precisa mergulhar no caos da perda do amor próprio de nossa gente, com humildade, para entender as causas do desânimo, da indiferença, do cinismo, da agressividade, do descaso com o que é de todos. Descascou o ovo da serpente. A degeneração da política, a corrupção desenfreada, a permissividade escancarada, o que tem a ver com a transgressão de todas as normas e a banalização da violência? Que laço se rompeu na relação de confiança de baixo para cima que dilacerou valores e referências? A deslealdade de cima para baixo esfrangalhou a lealdade de um com o outro, de todos com todos.
Até que ponto nos contamina a doença maligna que corrói a alma do brasileiro, que não será debelada com donativos sociais, ainda que imprescindíveis nas atuais circunstâncias?
Não dispomos mais, a qualquer hora, dos conselhos dele mas carregamos conosco, com a legitimidade que só dele emanava, o mandato que nos delegou:
"Nós temos a nossa responsabilidade com a história. Nosso partido é o único com determinação de assumir as grandes causas nacionais. Nenhum partido é tão nacionalista quanto o nosso. Queremos um país desenvolvido, autônomo, independente. Queremos libertar o povo brasileiro em matéria de oportunidade, de acesso a uma vida digna. O Trabalhismo nasceu na Revolução de 30, de uma inspiração do presidente Getúlio Vargas, que foi evoluindo de acordo com o processo social, empenhado em garantir direitos à massa dos deserdados... Nós temos genética, somos uma grande sementeira de ideias em benefício do povo brasileiro. Temos que estar sempre onde está o povo. Existimos para dar voz aos que não tem voz. Nossa ancoragem é a área deserdada da população. Nosso guia é o interesse público e o bem comum. Há muito preconceito contra nós. Podem dizer e fazer o que quiserem contra nós, mas gente de vergonha na cara nunca fica quieta quando é questionada.... Graças a Deus somos um partido pequeno. O que adianta ser grande no tamanho e não fazer nada?"
Somos fracos em quantidade e fortes em qualidade. Aprendemos com ele a não ter vergonha de ser brasileiro nem medo de povo. Notaram que povo, pátria, nação, nacionalidade, nacionalismo, são palavras que sumiram dos jornais e dos discursos? Estamos em muito boa companhia na relação dos sentimentos refugados pela patrulha ideológica da estética da exclusão.
Era de "bom tom" negar escola aos filhos dos pobres até Brizola rebentar o cadeado da discriminação. Entraria na história, lépido e faceiro, de braços com a meninada, pelo portão de milhares de brizoletas e brizolões, se mais não fizesse. E fez muito no enfrentamento de oligarquias e oligopólios. E por isso era ainda mais perigoso. A história lhe abriria as portas pelo que disse na hora em que era de "bom gosto" calar. O "bom tom" de hoje, de democratizar a ignorância, vai perdurar até surgir outro visionário trabalhista. Qualquer programa de reeducação em massa, de emergência ou permanente, será inócuo sem o selo de qualidade do trabalhismo.
O veto das elites originou-se da obstinação de Brizola com a educação. Um sonho subversivo guiava Brizola, inspirado na saga do menino pobre que rondava escolas entre um biscate e outro. Intuiu que cabe aos filhos da pobreza a missão de civilizar as elites trogloditas.
A dissolução social
Até a derrapagem mundial, avançava a economia da importação de crescimento e exportação do lucro, e regredia a ética do Brasil Legal em relação ao Brasil Real. O PIB do poder não precisou desemperrar as fronteiras sociais, a não ser nos pontos de passagem da fila de emprego. Crescer para dentro é a receita trabalhista.
A reação à cota na universidade explicitou a cumplicidade da intelectualidade com a cronificação da desigualdade. Recomeçou a pressão por reformas para trás. A cargo da grande mídia - as cadeias de jornal, rádio e TV - a agenda do apartheid desdobra pontualmente as etapas de estranhamento e animosidade entre os do meio e os de baixo. Os do meio aprendem a se alhear da realidade, a suspeitar de pobres, a se desligar do ambiente subjetivo comum e a curtir um estilo de vida exótico.
Os de baixo são ensinados a se julgar inferiores, incapazes de assimilar os códigos de compreensão da realidade. Em retribuição à aceitação da sina sem-nada podem comparar dinheiro a longo prazo e juros estratosféricos nos bancos disfarçados de lojas de eletrodomésticos. Os de cima comemoram a separação dos brasileiros.
Dia a dia, a consciência social vai embotando, a capacidade de pensar encolhendo. "Fomos perdendo a condição de país lúcido" (2). A grande mídia cozinha o caldo do diabo em fogo colorido, à espera da hora de jogar a culpa da criminalidade nos pobres. Vem aí o mega-espetáculo da guerra civil social.
Brizola detectou a conivência da monstruosa engrenagem de desinformação com a dissolução social. Sacou a manha da estratégia de desconstrução da vontade pública e implantação em seu lugar da opinião pública prefabricada. Sua última grande investida contra a ditadura da palavra ainda será reconhecida como precursora da causa da democratização da informação. Investigou a interdição do espaço público ao debate e flagrou a intimidade dos barões da imprensa com a fina flor da pilantragem financeira. Em represália, foi catalogado como um fóssil vivo da política. O muro de lá caiu, a esquerda retrocedeu em pânico e em parte se vendeu. Só Brizola continuou forcejando contra os muros intocáveis daqui, ermitão solitário pregando no deserto os mandamentos da brasilidade.
Não faz muito, nós mesmos vacilamos diante do falso dilema socialismo X Trabalhismo. Não prestamos atenção quando falou que o Trabalhismo é o socialismo caboclo,moreno, mulato, mestiço. Escapamos da reforma ideológica meia sola.
Do reconhecimento dos direitos sociais à montagem da infraestrutura de desenvolvimento o Brasil chegou até aqui podendo ser ainda mais pelas mãos do Trabalhismo. No balaio da memória social não há outra opção à exclusão.
Não podemos esquecer que a execração que penamos tem outro destinatário - o povo brasileiro - e isso deve nos orgulhar em vez de abater. Andamos desanimados mas não podemos baixar a cabeça. Nossa melhor homenagem a Brizola nesta hora é a reflexão sobre tudo que o Trabalhismo deu ao Brasil e aos brasileiros e o muito que ainda oferece como sementeira das idéias de igualdade. Estamos proibidos de subir a rampa, não de ajudar o povo a se organizar.

(1) Definição do historiador Thomas Skidmore para o modelo político-econômico histórico do Brasil.
(2) Consequência - segundo Brizola - da contínua lavagem ideológica a que a população é submetida.

(*) Carlos Alberto Kolecza é jornalista

terça-feira, 25 de junho de 2013

Vieira da Cunha: "Brizola, antes de tudo, era um patriota"


A notícia da morte do Governador Leonel de Moura Brizola encontrou-me na distante cidade de Pequim, na China, onde, participava da missão oficial do Estado do Rio Grande do Sul naquele país. Eram cerca de 8h25min da manhã, em Pequim - 9h25min da noite, no Brasil -, o Governador Leonel Brizola havia falecido há poucos minutos, e o seu assessor de imprensa, Fernando Brito, telefonava para me comunicar a morte.
Imediatamente, justifiquei ao Governador Germano Rigotto e aos demais membros da comitiva a necessidade de voltar para o Brasil ainda em tempo de participar das homenagens ao nosso Líder Brizola.
 Felizmente, consegui um plano de vôo Pequim-Frankfurt-São Paulo-Porto Alegre. Foram mais de trinta horas de viagem, mas consegui chegar por volta de 10 horas da manhã do dia 23 de junho, ainda em tempo de receber o corpo do Governador Leonel Brizola, no início da tarde, no Aeroporto Salgado Filho. Não poderia deixar de estar lá, porque, se uma só pessoa houvesse no Aeroporto Salgado Filho para receber o Governador Leonel Brizola, essa pessoa seria eu, haja vista os laços não só de liderado para líder que nos uniam, mas o respeito muito grande, pessoal, além de político que eu tinha com o Governador Leonel Brizola.
Acalentáramos uma relação muito próxima que se aprofundou desde 1994, quando me elegi pela primeira vez Deputado Estadual. Nossos contatos, desde aquela época, portanto, nos últimos dez anos, eram praticamente diários. Falamos por telefone na véspera de sua morte. Liguei para ele, de Pequim, porque estávamos vivendo o período das convenções partidárias e conversávamos sobre as alianças nas eleições municipais de Porto Alegre, do Rio de Janeiro e de outras capitais.
Ele estava bem, com a voz firme, dizia que se estava recuperando de uma indisposição que havia tido dias antes na cidade de Montevidéu. Lastimavelmente, na manhã seguinte, recebi a notícia da sua morte.
Meu primeiro contato pessoal com o Governador Leonel Brizola deu-se logo depois da sua chegada do exílio. Eu era Presidente do Centro Acadêmico André da Rocha, da Faculdade de Direito da UFRGS. Organizáramos um seminário intitulado Rumos da Oposição Brasileira.
 Nós, estudantes, com muita curiosidade, víamos o quadro político- partidário se formando. Nós, que havíamos crescido sob o bipartidarismo, estávamos sedentos por saber quais os partidos políticos que se reorganizariam com a reconquista da democracia no nosso País.
Trouxemos, então, para a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, os principais líderes nacionais dos partidos políticos que haviam-se reorganizado. Recordo-me de que no Plenário Farroupilha falou o líder Luiz Carlos Prestes sobre a reorganização do Partido Comunista. No Plenário João Neves da Fontoura, falou Leonel Brizola sobre a reorganização do PTB - Partido Trabalhista Brasileiro. Ainda não lhe haviam roubado a histórica sigla.
Era o ano de 1979, o Governador Leonel Brizola fez um pronunciamento sobre o que era o trabalhismo, os compromissos do trabalhismo, sobre sua trajetória histórica, sobre o Movimento de 64, enfim, sobre os grandes temas nacionais e internacionais. E eu, que, na época, tinha 19 anos de idade, era estudante, imediatamente me identifiquei com suas idéias, com o programa daquele Partido que se reorganizava, e, ali mesmo, naquela palestra, decidi que aquele seria o meu caminho político-partidário.
Em 1981, filiei-me ao Partido Democrático Trabalhista. Militei na juventude do Partido inicialmente, depois concorri a vereador, em 1982, nas primeiras eleições pós-Ditadura. Em 1986, assumi uma cadeira na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, ocasião em que tive oportunidade de prestar uma homenagem ao Governador Leonel Brizola.
Recordo bem o dia: era 27 de agosto de 1986. Essa data era muito significativa porque transcorriam 25 anos do Movimento da Legalidade. Aquele episódio histórico fez com que uma multidão tomasse a Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, em defesa da Constituição, em defesa do regime democrático, que estava ameaçado porque as elites da época não queriam que o Vice-Presidente da República eleito, João Goulart, assumisse os comandos do destino deste País, uma vez que Jânio Quadros havia renunciado.
Foi o então Governador Leonel Brizola, jovem Governador, na época com 39 anos de idade, que comandou aquele Movimento histórico que acabou garantindo a posse do Presidente João Goulart. Ali Leonel Brizola projetou-se nacional e internacionalmente, porque aquele foi um dos maiores movimentos cívico-populares que já teve registro na nossa história. Foi um Movimento que ganhou consciências em todo o País e que acabou vitorioso, mesmo que seu brilho tivesse sido empanado pelo casuísmo do parlamentarismo.
De qualquer maneira, o golpe foi abortado, e João Goulart assumiu a Presidência da República, graças à coragem, à ousadia, à liderança, à capacidade de mobilização popular que teve o então jovem Governador Leonel Brizola.
Destaco, daquele histórico dia, um trecho do discurso que fez Leonel Brizola quando tomou conhecimento de que o Palácio Piratini estava na iminência de um bombardeio. A ordem de bombardeio partiu do 3.º Exército, e Leonel Brizola, no histórico pronunciamento, dirigindo-se ao povo gaúcho, disse o seguinte:
"Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio, numa demonstração de protesto contra essa loucura e esse desatino. Venham, e se eles quiserem cometer essa chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida sem honra, sem dignidade e sem glória".
 Essas foram as palavras corajosas do líder da Legalidade, Leonel Brizola, decisivas naquele momento histórico, para que as forças da reação e do conservadorismo recuassem e o Movimento triunfasse. A coragem e a liderança de Leonel Brizola estavam demonstradas para todo o País.
Honrado que fui com a condição de orador, distinguido pela família no túmulo do nosso Governador, no Município de São Borja, disse que Leonel Brizola tinha sido o maior Governador que o Rio Grande do Sul já teve. É verdade. Não foi a emoção do momento que me fez proferir aquelas palavras, mas os fatos históricos, suas obras, suas realizações, que atestam que aquela foi uma assertiva verdadeira. 
Me referi antes ao Movimento da Legalidade e tenho também de lembrar o maior plano de escolarização que este país já testemunhou. Foram 6.300 escolas construídas em apenas quatro anos de Governo. São quase 1.600 escolas por ano. Essa obra magnífica de um Governador apaixonado pela causa da educação lançou as bases para que o Rio Grande do Sul pudesse ser hoje o Estado que tem o melhor nível de qualidade de vida do País. Tenho certeza de que isso se deve àquelas escolas, pois fizeram com que fosse desprezível o índice de analfabetismo no Rio Grande do Sul comparado ao de outros Estados do País. Graças aos pesados investimentos que Leonel Brizola fez em educação, o Rio Grande do Sul tem atualmente essa condição ímpar no contexto nacional.
Leonel Brizola fez também uma reforma agrária que até os dias de hoje é considerada uma referência positiva. Está lá o Banhado do Colégio, no Município de Camaquã, eloqüentemente testemunhando que é possível fazer um plano de distribuição de terras que permita aos nossos trabalhadores vocacionados para a produção tirarem do seu pedaço de terra o seu sustento, assim contribuindo para o desenvolvimento do Estado e do País com os frutos do seu trabalho.
Foi no Governo de Leonel Brizola que tivemos a corajosa encampação das empresas multinacionais de energia elétrica e de telefonia que emperravam o processo de desenvolvimento econômico do nosso Estado. Corajosamente, desapropriou essas empresas, fundando a Companhia Estadual de Energia Elétrica - CEEE - e a Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações - CRT -, que foram fundamentais para o crescimento do nosso Estado ao longo das últimas décadas.
Poderia citar a Estrada da Produção, a Refinaria Alberto Pasqualini, a Aços Finos Piratini e tantas outras obras e realizações que fizeram com que o Governo Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul, fosse um Governo que marcou época. S. Exa. fez jus ao título de maior Governador do Estado do Rio Grande do Sul, atributo que lhe conferi sem exagero algum.
 A Legalidade, em 1961, apenas adiou o golpe que viria três anos depois. Mil novecentos e sessenta e quatro foi marcado pelo Golpe Militar. Naquela época, diversos cidadãos e cidadãs brasileiros foram perseguidos e tiveram de viver no exterior, como foi o caso de Leonel Brizola.
 A propósito, dificilmente alguém foi mais perseguido ou teve a sua vida mais virada ao avesso pela Ditadura Militar do que o ex-Governador Leonel Brizola, quando invadiram a sua casa, reviraram as suas gavetas e remexeram em seus objetos pessoais à procura de algo que pudesse comprometê-lo. Nada! Absolutamente nada encontraram que pudesse sequer arranhar a honrada vida pública ou privada deste homem que recém havia governado o Rio Grande.
Portanto, além de ser um líder corajoso e ousado, um administrador de mão cheia, inovador, Leonel Brizola tinha essa marca, a marca da honradez, da probidade. Era daqueles homens públicos com a característica da retidão de conduta. Numa época em que muitos políticos se satisfazem com as migalhas do poder, o exemplo de Leonel Brizola se agiganta, porque foi um homem que, por fidelidade aos seus princípios, rompeu com os governos que ajudou a eleger - no Rio de Janeiro, com Anthony Garotinho; no plano federal, com Luiz Inácio Lula da Silva, pois tais governantes haviam-se afastado daqueles compromissos que levaram Leonel Brizola a apoiá-los nas suas respectivas eleições. Rompeu com os Poderes Estadual e Federal para ficar em paz com a sua consciência e fiel aos seus compromissos e princípios.
O que nos conforta nesta hora é saber que Leonel Brizola morreu fazendo aquilo de que mais gostava, aquilo que sabia fazer: política. Um dia antes de sua morte, recebia lideranças políticas, mesmo acamado, no seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro. Como predisse em vida, morreu como um cavalo inglês, morreu na cancha, morreu peleando, o que nos conforta.
O que nos animou muito também foi a solidariedade, a comoção popular que testemunhamos não só no Rio de Janeiro - Estado que governou por duas vezes e onde deixou talvez sua maior marca registrada, os CIEPs, as escolas de turno integral -, mas também em Porto Alegre e na cidade de São Borja, onde foi enterrado.
As multidões vieram se despedir do grande líder que, antes de tudo, era um patriota, outra de suas marcas registradas. A missa de sétimo dia, realizada na Igreja da Candelária foi concluída com o Hino da Independência, que Brizola costumava puxar pessoalmente ao encerrar os nossos principais atos partidários. Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil -, cantava com uma emoção que contagiava, contaminando a todos com seu patriotismo, com seu compromisso inabalável de defesa da soberania nacional.
O dia 21 de junho de 2004 vai ficar marcado na história do Brasil, assim como ficaram o 24 de agosto de 1954, quando nos deixou o grande estadista Getúlio Vargas, e o 06 de dezembro de 1976, quando nos deixou João Goulart. O 21 de junho de 2004 entrou definitivamente para a história nacional como a data em que partiu um dos nossos maiores líderes, daqueles que se vão, mas deixam para a eternidade um rastro de realizações e bons exemplos, guia seguro para quem quer fazer política com dignidade, coerência e firmeza de princípios, marcas registradas de Leonel de Moura Brizola.
(Depoimento em janeiro de 2005)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Trajano Ribeiro, em missa para Brizola no Rio, analisa manifestações de rua

Os nove anos da morte de Brizola foram lembrados na última sexta-feira (21/6) no Rio de Janeiro com uma missa na Igreja de São Benedito dos Homens Pretos, na Rua Uruguaiana, no Centro do Rio de Janeiro – igreja frequentada pelo próprio Brizola - em uma solenidade marcada pela direção do PDT-RJ para lembrar a data.
Estiveram presentes companheiros de partido, dirigentes do PDT-RJ e também muitos militantes do partido – veteranos de várias campanhas lideradas por Leonel Brizola no Rio de Janeiro, desde a sua espetacular eleição a deputado federal em 1962, aos dois governos estaduais que conquistou, nas eleições de 1982 e 1991, além de todas as outras campanhas que protagonizou até nos deixar, em junho de 2004. Um dos presentes foi o deputado Bruno Correia.
Os participantes da missa – Carlos Lupi, presidente nacional e estadual do PDT não pode participar por ter viajado para São Borja, também para homenagear Brizola – tiveram a oportunidade de ouvir as palavras de Trajano Ribeiro, um dos fundadores do PDT e ex-integrante do secretariado de Brizola, que fez uma análise atualíssima dos movimentos de rua que vem ocorrendo no Brasil.
Confiram a íntegra da fala de Trajano Ribeiro, gravada e transcrita por Apio Gomes:
“Que bom que vieram tantos para a missa do companheiro Brizola. Queria saudar todos os companheiros.
“O país vive um momento diferente. E, nós, sempre nessas ocasiões, nos perguntamos “o que pensaria, e o que diria o nosso líder Brizola?”.
“E, como não temos uma resposta cabal, nos damos conta de quanta falta ele nos faz para interpretar e enfrentar esses momentos – eu não diria de instabilidade, mas momentos de perplexidade.
“Há homens que nascem com uma chama da justiça. Felizmente, o nosso Partido foi fundado e reuniu os melhores destes homens.
“Brizola é o mais contemporâneo, o mais recente e talvez o mais lutador de todos eles. Ele não admitia a injustiça com o nosso povo. Ele dedicou a vida inteira dele a combater a desigualdade, a discriminação, a injustiça, a exclusão; e, principalmente, a defender o direito de cada criança brasileira ser um cidadão pleno, no exercício de seus direitos, no desenvolvimento das suas capacidades.
“Hoje, com este quadro que o país vive, talvez Brizola usasse uma expressão que ele adotava muito em situações semelhantes, que reflete aquela situação dos tropeiros que vão levando a tropa; e que, quando o sol cai, acampam, fazem uma fogueira e põem uma chaleira para esquentar água para o chimarrão; de repente, vai lá um dos tropeiros e tenta encher a cuia, mas não sai água da chaleira; aí – o que é… o que não é… –, abrem a chaleira: um outro tropeiro, inadvertidamente, colocou uma batata para cozinhar na chaleira. Então, Brizola dizia: “Tem batata nesta chaleira!…”.
“Eu advertiria os companheiros, acho que fielmente interpretando o que ele pensaria. E ouso fazer isto, pelos anos de convívio que tive com ele. Isto que está acontecendo aí é o renascimento das ruas, é a mobilização da nossa juventude, por tanto tempo apática. Mas – cuidado! – porque pode ter uma batata nessa chaleira.
“Preocupa-me muito um movimento que não tem lideranças; preocupa-me muito um movimento que não tem programa, não tem, não tem plataforma, não tem palavra de ordem; e que, na ausência destas coisas, emite, na voz de milhares e milhares, palavrões e outras frases que não têm uma utilidade para o nosso povo.
“Mas isso não deve ser ignorado.
“Mas precisa – principalmente nós, que temos a responsabilidade histórica de levar o pensamento de Vargas, de Jango e de Leonel Brizola –, exige de nós uma profunda reflexão.
“Eu vou pedir ao companheiro Carlos Lupi, o nosso grande presidente, que convoque o Partido para uma profunda reflexão sobre o que está acontecendo. Porque não me venham dizer que os partidos não existem mais, porque a sociedade não pode sobreviver, no seu estágio atual de desenvolvimento, sem os partidos.
“O que houve foi um processo – que a própria estrutura institucional do país provocou – de esvaziamento dos partidos; de esvaziamento dos programas dos partidos, em benefício dos indivíduos que, eventualmente, representam os partidos.
“Então, nós temos obrigação de refletir; e temos obrigação de dizer ao nosso povo o que nós achamos se seja a interpretação correta, e o rumo correto a seguir.
“Isto seria o que o companheiro Brizola faria: convocaria o Partido e iniciaria uma ampla discussão; sempre preocupado com eventual utilização do idealismo da nossa juventude para fins contrários à democracia e contrários aos interesses do nosso povo.
“Por isto, companheiros, rezamos hoje aqui, debaixo deste teto daqueles que representam aqueles a quem o nosso Partido dedica um carinho especial – que são os negros brasileiros, que forjaram grande parte desta nação; e que são responsáveis, entre outras coisas, pela manutenção, salvaguarda e garantia de uma cultura própria do povo brasileiro, que foi haurida, fundamentalmente, da influência do povo africano, que veio aqui doar seu sangue, o seu suor.
“Muito obrigado”.

domingo, 23 de junho de 2013

Trajano Ribeiro: “Ele foi o intérprete de nossa rebeldia, de nosso inconformismo”


O telefone tocou, por volta de 11 horas da manhã daquele sábado. Era Brizola.
-Que tal?
-Bom dia Governador. Por aqui vamos indo. E aí como estão as coisas?
- Estamos trabalhando, vamos bem, como vão a Maria e as crianças? Veja, queria que tu considerasses a possibilidades de tirares uns dias aqui em Nova Iorque. Temos muito que conversar e trabalhar.
A partir desse diálogo havido no início de outubro de 1977, iniciamos um período de convivência, riquíssimo para mim. Essa convivência permitiu-me conhecer próxima e profundamente o homem que representou para minha geração o que Getulio representara para a geração de meu pai. Brizola, afinal era o intérprete da nossa rebeldia, do nosso inconformismo com o subdesenvolvimento do Brasil, com a ingerência crescente dos Estados Unidos na América Latina, com as injustiças sociais gritantes, já nos anos 60.
Ele nos levou a resistir ao golpe em 1961, ele nos ofereceu a nossa revolução de 30, da qual meu pai e meus tios haviam participado, cujas histórias não se cansavam de contar. Claro, o Brasil precisava uma nova revolução de 30 e Brizola havia criado as condições para que ela ocorresse, ao mobilizar, organizar e armar o povo contra a ruptura da ordem constitucional, que na realidade significava uma ruptura com as conquistas de 30. Eram os inimigos de Getulio, que não queriam a posse de Jango. Era a velha UDN, entreguista e liberal, incitando os militares a golpear a democracia. Era a luta entre o Brasil senhor de si, soberano, com projeto de desenvolvimento e o Brasil alienado, curvado, submisso e explorado, endividado e dependente.
Ele nos dera isto, a possibilidade concreta de construirmos o Brasil de todos os brasileiros e isto garantiu-lhe um lugar privilegiado no imaginário de minha geração. Não fomos à guerra, prevaleceu a lógica política, mas ele continuou como referência. E mesmo no exílio era o marco, a fonte. Nos períodos que antecediam as eleições promovidas durante a ditadura havia uma revoada ao Uruguai. -Quando não é época de eleição, o pasto cresce na frente da minha porta, disse-me ele uma ocasião, numa das intermináveis conversas que tínhamos, sempre sobre política, com algumas breves lições sobre o manejo do gado e da terra, na sua estância em Durazno, referindo-se ao fato de que nas vésperas das eleições os candidatos acorriam em peso em busca nem que fosse de um conselho.
Mas não eram somente candidatos que o procuravam. Militantes de vários movimentos também o faziam, estudantes, trabalhadores, intelectuais. Íamos lá discutir, informa-lo dos últimos acontecimentos, e, sobretudo ouvi-lo.
Em julho de 1977 estive lá em companhia de alguns companheiros, entre eles o velho Guaranha, como chamávamos carinhosamente o incansável pombo correio que durante os tensos dias da campanha da Legalidade levara a Brizola, em primeira mão, a mensagem contendo a ordem de bombardeio do Palácio Piratini, expedida pelos ministros militares amotinados. O objetivo da viagem era tentar convencer Brizola a escrever um livro. Achávamos que era hora de reinserí-lo no cenário político. Havia um vácuo na política brasileira. As grandes questões nacionais não faziam parte das discussões políticas institucionalizadas. O MDB cingia-se á uma tímida luta pela redemocratização do país e até a luta pela anistia não era enfatizada pelos partidos políticos admitidos. As reformas de base haviam sido esquecidas naquele grande baú dos sonhos frustrados dos povos, cuja guarda a história confia aos oportunistas, sempre dispostos a levantar a bandeira da prudência e que , no caso, estavam mais preocupados em proteger seus mandatos contra a ira da ditadura. Era a hora de Brizola iniciar seu retorno político, achávamos nós, mesmo que a real possibilidade de sua volta ao país estivesse longínqua.
Não podíamos imaginar, àquela altura, que menos de dois meses depois ele seria catapultado de forma inesperada para o cenário político brasileiro, reaparecendo, nem mais nem menos que em Nova Iorque, sendo uma entrevista na Voz da América, seu primeiro ato político após sua expulsão do Uruguai em setembro.
O livro. Queríamos que ele escrevesse um livro. Estávamos todos sentados na sala, após o jantar. O Governador caminhava de um lado para outro, em frente à lareira, acesa para enfrentar o frio próximo de zero. As labaredas projetavam um Brizola enorme e irrequieto nas paredes da sala. Ele falava mais pausadamente do que de costume, refletia em voz alta sobre nossa proposta. De repente parou e disse: -Acho que não devo escrever o livro. É arriscado. Vejam o que aconteceu com o Perón... -e sem esclarecer a que se referia prosseguiu:
-É melhor eu escrever umas cartas para o Seu Guaranha. Nelas eu vou expondo alguns pontos de vista sobre os problemas. Vocês reproduzem e distribuem. É mais prático, mais ágil e posso sempre abordar questões atuais. O livro cristaliza muito.
Voltamos ao Brasil com a convicção de que ele estava certo e que teríamos que montar um bom sistema para distribuir as cartas que seriam escritas, sem que os organismos de segurança atrapalhassem. Menos de dois meses depois dessa reunião em sua estância, em Durazno, ele era expulso do Uruguai sem chegar a escrever a primeira carta.
O senso prático e a objetividade de Brizola, certamente responsáveis pelo sucesso de suas administrações no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, especialmente na consecução de metas que ele entendia prioritárias, o impulsionava também em decisões pessoais e foi o que, sem dúvida, levou-o a hospedar-se no Hotel Roosevelt em Nova Iorque. - Aqui tenho a certeza de conviver com a nossa gente, aqui se hospedam as tripulações da nossa Varig. Eles me trazem os jornais brasileiros todos os dias e também erva mate e outras coisas do Brasil, disse-me ele quando chegamos no hotel, vindos do Aeroporto.
O Hotel Roosevelt, localizado junto à estação Grand Central é um prédio antigo, com apartamentos confortáveis e na época operava com diárias módicas. Despedimo-nos na recepção e ele me disse: - Descansa um pouco que depois teremos um almoço de trabalho. E assim foi. Por volta de meio dia e meia o telefone tocou, - passa aqui no meu apartamento, assim cumprimentas a Neuza que quer te ver e está ansiosa por notícias.
A caminho do almoço ele foi me dizendo:
- Sabe, aqui tem um restaurante de comida rápida muito bom. Eles tem um sanduíche de carne chamado Wopper muito interessante, o nome do restaurante é Kings Burger. Seguido almoçamos lá. - E lá fomos nós para o Kings Burger comer Wopper que ele fazia acompanhar de um suco e café. Falou-me muito sobre a cidade que o acolhera, sobre a maneira de ser dos novaiorquinos.
Depois fixou o olhar através da grande vitrine ao lado da nossa mesa no curto horizonte que a paisagem urbana permite e ficou alguns segundos em silêncio. Depois disse-me  -Trajano, temos pela frente um trabalho que não é sopa. Acho que as coisas agora se abriram e eu me sinto no dever de reorganizar o Trabalhismo, reorganizar o nosso partido. Tu tens que procurar algumas pessoas. Tu vais ter que te concentrar nisto. Eu vou te dar os nomes. Tu tratas de localiza-los e conversar com eles. Se for o caso, põe em contato comigo pelo telefone. - Senti naquele momento um misto de satisfação e angústia. Satisfação por ter sido honrado com uma missão tão relevante e angústia pela grandeza do desafio e a necessidade de vencê-lo.
 Naquele momento pensei no privilégio que eu estava tendo. Pensei nos meus companheiros de lutas políticas no colégio e na universidade, nos companheiros de lutas pós-universidade.
Senti-me representando a todos e comecei a achar que havia valido a pena a nossa luta. Finalmente abria-se uma perspectiva concreta de influirmos nos destinos do nosso país e do nosso povo. Nenhum sacrifício tinha sido em vão. Voltei dez dias depois para o Rio de Janeiro e comecei a cumprir a tarefa, com humildade, mas sem desanimar. Foi difícil. Alguns diziam ironicamente - Brizola?  Sim, Brizola, e os céticos tiveram que morder a língua.
(Depoimento em 2005)

sábado, 8 de junho de 2013

Carlos Alberto Kolecza: Brizola desmascarou a grande mídia



Fonte: OM - Carlos Alberto Kolecza | 3 de junho de 2013


O jornalista gaúcho Carlos Alberto Kolecza analisa neste artigo, publicado originalmente em 2007, o papel pioneiro de Leonel Brizola no combate ao oligopólio dos meios de comunicação no Brasil. Principal líder da oposição à ditadura, revolucionário e combativo, Brizola foi o inimigo número um da grande mídia. Que tudo fez para destruir sua boa imagem pública construída a partir do episódio da Legalidade, da encampação de multinacionais ineficientes e, principalmente, da defesa intransigente dos interesses nacionais. (OM)

Por Carlos Alberto Kolecza - Em sua última grande batalha, Brizola desvendou a cumplicidade da grande mídia no boicote ao desenvolvimento com justiça social e soberania nacional - Ele não pôde levar adiante os objetivos do Trabalhismo mas legou um ensinamento de valor insuperável na compreensão do papel dos meios de comunicação na consumação do apartheid social e na submissão do país aos grupos transnacionais – A grande mídia empregou contra Brizola a mesma discriminação com que as elites tentam perpetuar a exclusão social – Ele será reconhecido como patrono da luta pela democratização da informação, pela clarividência das lições e coragem com que enfrentou a máquina da mentira.
“O poder econômico consegue envolver os meios de comunicação, que são livres apenas em algumas faixas e agem como empresários dos homens de negócios. A imprensa atua claramente como um rolo compressor e transforma-se num partido único, como no caso do apoio à leiloagem do patrimônio público. Não querem discutir nada, sempre de cabeça feita, e são muito hábeis em desenvolver a intriga. Precisamos libertar a imprensa brasileira do domínio econômico”. (Leonel Brizola)
Nenhum político ou pensador foi tão fundo quanto Leonel Brizola no desvendamento do papel da grande mídia na perpetuação da desigualdade social e da dependência do Brasil. Publicamente, ninguém antes apontou os conglomerados do jornal, rádio e TV, as revistas semanais e grandes jornais isolados, como uma corporação que ilegitimamente condiciona o jogo político e a ação dos governos. Ensinou com exemplos irrefutáveis que a grande mídia optou por exercer o controle social em vez de informar. Percebeu a estranha coincidência das movimentações unilaterais e monolíticas dos órgãos de imprensa ocorrerem em momentos cruciais para a distribuição de renda e o interesse nacional. Denunciou a chantagem das campanhas de desestabilização dos governos e a irresponsabilidade dos barões da mídia com a democracia e a coesão social.
A grande mídia renunciou à sua função específica de serviço de interesse público – acusou Brizola – para ser a ponta de lança de um centro oculto de poder de produção de exclusão social. Nesse consórcio de poder à margem das instituições – deduziu – a cota da grande mídia corresponde à produção de exclusão da informação. Brizola repetiu a denúncia de deturpação da finalidade essencial dos meios de comunicação por anos a fio, ante inúmeras platéias, sem ser contestado uma única vez. Em revide truculento e obscurantista, característica peculiar de quem mutila a informação, a grande mídia partiu maciçamente para o enxovalhamento político e pessoal, com o objetivo de expurgar Brizola da vida pública. De perigoso à ordem pública antes de 64, Brizola virou inimigo da ordem econômica. Os espasmos de desordem social já esguichavam sangue, na década de 80, e fazia falta um vilão de plantão. O difícil era enfiar alguém de integridade inatacável e lucidez esplendorosa na moldura de inimigo público. Inabalável nas convicções e consciente de suas responsabilidades, Brizola atribuiu o desinteresse da grande mídia pelo desenvolvimento do país à vinculação das elites econômicas tradicionais a grupos de fora, em relação típica dos tempos de Brasil Colônia. Suas advertências foram proféticas: a grande mídia arrombou por dentro os portões dos setores estratégicos da economia, como sócia privilegiada das privatizações.
Um caso de crime,
assassinato moral.
Brizola sabia que pagaria caro por desnudar a verdadeira função da grande mídia, de sentinela dos privilégios causadores da desigualdade. A abominação de sua imagem, antes e depois de 64, figura entre os capítulos mais sórdidos da imprensa brasileira.
Rotular de equívoco pueril o enfrentamento com as Organizações Globo é afronta à história de Brizola, indício de escapismo ou de cumplicidade com seus detratores. Brizola focalizava na Rede Globo, hegemônica em audiência e por extensão na intromissão em assuntos da política e do governo, o paradigma de distorção de uma atividade comprometida exclusivamente com o bem comum. Não livrava outras redes nem poupava emissora, jornal ou revista não pertencentes aos conglomerados multimídia. Costumava comparar rádios e TVs às empresas de ônibus – igualmente uma concessão pública – que são proibidas de recusar passageiros por suas crenças políticas ou religiosas. Exatamente o contrário da seleção de assuntos e pessoas (censura, na verdade) pela grande mídia.
Nenhuma lei outorga a uma empresa de comunicação ou a um jornalista individualmente o direito de destruir a imagem pública de alguém. Os tratadistas contemporâneos tipificam esse crime como assassinato moral.
O confronto com Roberto Marinho, então o homem mais poderoso do Brasil, diante de quem presidentes e ministros se prostravam reverentes, não foi episódio isolado ou temporão na carreira de Brizola. Inconformado com a discriminação dos jornais tradicionais ao trabalhismo, na década de 50, ele funda em Porto Alegre um vespertino (Clarim) afinado com sua visão modernizadora das relações sociais. Aprendera já nessa época que os grandes jornais não se importam com a estagnação econômica de um estado ou do país desde que elejam os candidatos conservadores. Descobre também que a resistência à industrialização enruste uma tara social, a fobia ao trabalhador. Às voltas com a oposição da Igreja e do latifúndio, inclui a mentalidade conservadora do Correio do Povo, o mais influente jornal gaúcho da época, entre os
fatores do marasmo econômico do estado. Responde às críticas falando por duas horas, ao estilo pé de ouvido, em programa semanal de rádio de grande audiência.
Cooptadora-mor de políticos para o campo conservador em troca de visibilidade midiática, não seria a Globo que docilizaria o pensamento de Brizola. Esperar que se resignasse seria o mesmo que aconselhá-lo a acatar o veto dos generais a João Goulart, após a renúncia de Jânio, sob a alegação de que não dispunha de tanques e aviões.
O erro de Brizola foi acreditar na solidariedade das forças progressistas e da intelectualidade. Não se deu conta que há muito poucos se atrevem, em público, a dizer não à Rede Globo. Ele foi supliciado midiaticamente como líder, governante e chefe de família, sem que uma voz se levantasse em sua defesa.
Políticos, intelectuais e empresários haviam aprendido, desde o regime militar, a não questionar as posições do centro obscuro de poder que se expressa por meio da Rede Globo. Brizola não foi a única vítima do jogo sujo da grande mídia nem será a última, mas com ele não havia complacência.
A redemocratização da informação “esqueceu-se” de acontecer no retorno dos civis ao poder e quase 30 anos depois a grande mídia opera a censura por conta própria nos mesmos moldes do regime militar.
Brizola não cutucou a onça com vara curta, ela foi rugir nos portões do Palácio Guanabara na versão mais sofisticada da elite boçal originada do tráfico de escravos, que ainda proíbe empregados no elevador social. A mesma elite que ainda responsabiliza Brizola pela explosão de violência no Rio aprovou silenciosamente a gratificação genocida a policiais a cada morte de “suspeito”. A vingança da fina flor da burguesia carioca à proibição de Brizola de arrombamento de casas e detenção de moradores da favela não mereceu uma linha de reprovação no Jornal Nacional...
Navalha afiada da
intolerância das elites
A implacável estigmatização de Brizola ao longo de sua trajetória atesta a incapacidade das elites dirigentes de considerarem uma proposta de revisão do pacto social, ainda mais vinda de alguém com representatividade política. Nada em Brizola sugeria o perfil de um político de idéias extremadas ou demagógicas. Caiu na lista negra da vanguarda nacional do atraso que não prevê a incorporação de contingentes crescentes à classe média, um mercado interno amplo e economia baseada em recursos próprios, os objetivos do trabalhismo.
Um risco em potencial à coesão das elites, caso conseguisse atrair uma facção delas ao diálogo, antes de 64 Brizola já figurava em primeiro lugar na galeria dos inimigos do establishment. Atenta ao menor sinal de fissura na ponta da pirâmide do poder – uma de suas tarefas encobertas - a grande mídia atracou-se com volúpia ao torneio de tiro ao alvo na imagem de Brizola. Alpinistas do jornalismo, com histórico de livre acesso às ante-salas do regime militar, em posições de topo nas grandes redações, candidataram-se aos prêmios. Acertaria na mosca quem “vendesse” Brizola como político superado, de linguagem defasada e práticas personalistas caudilhescas, distributivista, enfim, um fóssil vivo da pré-história política.
O clube fechado das finanças já armava o esquema das privatizações e da desregulamentação da economia, com a assistência de consultorias de ex-ministros da Fazenda e ex-diretores do Banco Central. Sob a garantia de servir-se à vontade na farra da leiloagem das teles, a grande mídia se encarrega de convencer a classe média a pressionar a classe política a reformar a Constituição. O bombardeio das vantagens fictícias da adesão incondicional ao receituário neoliberal se intensifica. Única resistência de peso a superar, Brizola é caricaturado como protótipo da mentalidade arcaica incapaz de adaptar-se aos novos tempos.
Curioso, os defeitos dele que povoam as colunas de grife da grande imprensa correspondem simetricamente às suas qualidades. O personalismo equivale a fidelidade inegociável a princípios, impermeável às concessões e conchavos da política tradicional; caudilhismo, a coragem no enfrentamento de desafios e capacidade de mobilização, como no episódio da Legalidade; populismo, o carisma na liderança popular; distributivismo, a determinação de quebrar o tabu do salário indigno; estatismo, a disposição inabalável de estadista de preservar os setores estratégicos da economia.
Cabeça feita pela colonizada e cada vez mais ativa legião dos formadores de opinião e obcecada em imitar o padrão de vida glamouroso dos filmes, a classe média vira as costas à gente feia e sem modos que insiste em morar por perto.
Não é a Brizola que, afinal, a grande mídia vence ao toque do plim-plim unificador da linguagem, uniformizador do olhar e padronizador de um modo de vida de uma sociedade fraturada, disforme e inviável. A ele resta continuar lutando até o fim, cada vez mais desamparado, carregando sozinho o projeto rejeitado de desenvolvimento com justiça social.
Levou com ele a frustração de um sonho mas legou uma certeza em relação aos meios de comunicação social. A corporação da grande mídia não apenas intervém indevidamente na superfície da vida política mas calculadamente busca interferir na delicada teia de subjetividades da sociedade, de modo a influir na luta social.
O enigma
da inércia
social, a faísca
Brizola parte para o exílio inconformado com a ferocidade da grande imprensa nos momentos decisivos da luta política, sempre ao lado das forças antidemocráticas. Foi assim com Getúlio, Jango e ele próprio. O fracasso das conspirações contra o regime militar introduz Brizola no enigma da inércia social, a incapacidade do conjunto da sociedade de mobilizar-se em torno de objetivos comuns. Nenhuma elite fora do Brasil parece tão hábil em desatender as necessidades das camadas humildes e tão eficiente em neutralizar os movimentos populares no nascedouro. É a razão nebulosa de os brasileiros não conseguirem se coesionar em torno de uma causa de interesse geral.
Chama-lhe atenção a desinibição com que a grande imprensa, a cabeça pensante da grande mídia, se refere à "sociedade brasileira", como se ela fosse una, simétrica, culturalmente homogênea e igual no modo de vida. Explica que essa sociedade abstrata só existe nos editoriais verbosos para justificar a imposição de uma visão única da realidade. Casualmente, a visão da minoria bem de vida, do Brasil de chapéu na mão atrás de vultosos investimentos externos à custa de sua soberania. "Costuma-se falar em sociedade brasileira. Há várias sociedades no Brasil", corrigem os que, em nome da minoria, fingem falar por todos.
Não será Brizola que vai ensinar o padre a rezar missa. Se reconhecer a existência de vários Brasis, obrigatoriamente a grande mídia terá que pôr os interesses de todos na mesa, caso insistir em representar a "sociedade brasileira". Ocultar a realidade é a saída esperta para continuar bancando os privilégios que travam o crescimento, boicotam o desenvolvimento e atolam o país na crise social.
A ocultação da realidade não se limita às duras condições e de falta de perspectiva de vida da maioria da população. Inclui sua música, suas crenças, seus anseios, as múltiplas manifestações de uma imensa diversidade cultural. A rejeição do valioso patrimônio de subjetividade das entranhas dos vários Brasis significa cassação de identidade cultural e equivale a um aviso prévio de exclusão social. Ao aviltar os signos e dicções de raiz da originalidade brasileira, a grande mídia corta o oxigênio do imaginário social. Brizola apostou obstinadamente no investimento essencial da acumulação de capital social - a educação. Acreditava que a escola geraria a inteligência social imprescindível a um pacto de convivência entre as várias sociedades.
O código estético colonizado (o famoso padrão Globo de qualidade) da grande mídia joga pesado na desidentificação de uma sociedade da outra. Ela cobra uma fatura de falsa integração para esconder que subliminarmente investe na desintegração. Do meio da névoa emerge a muralha fatídica do iceberg do apartheid social.
Nas meditações da solidão no exílio, Brizola detecta o nó da grande mídia no centro de poderes extralegais encobertos por outras atribuições. Capta a troca da função socializadora da informação pelo controle social com prerrogativas autoritárias. Conclui que a grande mídia substitui com vantagens as organizações que, no passado ou mais recentemente, ligavam-se obrigatoriamente às forças reacionárias para neutralizar movimentos por mudanças.
De reflexão em reflexão, Brizola desencava o verdadeiro motivo da condenação unânime às realizações de Vargas e de sustentação a aventuras golpistas: a decisão de frear o projeto trabalhista em visível ascensão eleitoral.
Mais, convence-se que a grande mídia investe na obstrução às tentativas de acordo entre as várias sociedades, apelando inclusive a pistoleiros de aluguel especialistas em homicídios políticos.
Comprometido com a reconciliação política dos brasileiros, arquiva suas descobertas, sem abrir mão da contribuição que espera dar à quebra da inércia social: a organização da vontade dos excluídos.
Surpresa
desagradável
na volta
Brizola retornou do exílio subestimando o quanto as concepções rígidas de hierarquia social, ressoadas pela grande mídia durante o regime militar, haviam impregnado a classe média. Imaginou a redemocratização multiplicando as oportunidades de expressão dos setores sociais silenciados e um país fervilhando de idéias até então sufocadas. Igualmente dimensionara mal a contrariedade de partidos de oposição ao regime à ocupação do espaço que lhe cabia no cenário político. Logo sentiu as estocadas, amplificadas pelos meios de comunicação. Expoentes de esquerda disfarçavam o mal-estar recitando a cantilena dos perigos do populismo, a alergia ao povo dos sociólogos colonizados.
O estoque de má vontade da grande mídia extravasa a cada dia a menor movimentação de Brizola (..."são muito hábeis em desenvolver a intriga"...). Percorre o país na pacienciosa tarefa de fundar e definir a prioridade de seu partido: ajudar na organização dos excluídos. Então tromba com uma descoberta inimaginável: a informação jornalística continua controlada tal e qual nos tempos da ditadura. Na restauração da liberdade de imprensa, a censura apenas havia passado das mãos dos generais às dos empresários da comunicação. Agora entende a hostilidade dos comentadores políticos, e dos intelectuais midiáticos que falam sobre tudo por encomenda e sob medida.
De repente, "doutrinas arrebatadoras" desembarcam nas telinhas, nas colunas dos jornais e nos estúdios de rádio, pregando uma era fantástica de progresso. Palavras mágicas - globalização e privatização - pegam carona na linguagem cotidiana. Brizola repara que a ladainha uníssona dos formadores de opinião coincide com a toada dos consultores econômicos e banqueiros de primeira viagem com passagem por cargos públicos de primeiro escalão. Admira-se com a intimidade entre jornalistas e banqueiros. Escandaliza-se com a ensurdecedora gritaria pela desestatização seguida de histérica onda de privatização. Revoltado, ouve FHC proclamar "o fim da Era Vargas".
Tudo se encadeia em sincronia matemática nas vitrinas feéricas de notícia e opinião na pilotagem da captura do patrimônio suado de gerações pelos predadores disfarçados de investidores. Uma cortina de silêncio recobre a mobilização das ruas contra as privatizações. Brizola testemunha em Porto Alegre a censura da rádio de uma organização jornalística a um ato público contra a privatização das telecomunicações. A transmissão, paga antecipadamente, é cancelada à última hora sem justificativa. Concorda plenamente com o protesto de um líder sindical: "Nem pagando se tem democracia na mídia"(1). Já testemunhou e foi vítima da truculência da grande mídia e ainda tem pela frente inúmeras outras.
A sinistra fabricação de medo
A serviço exclusivamente das elites do atraso, a grande mídia empenha-se em sabotar as propostas de diálogo entre as diferentes sociedades brasileiras, por implicarem na desconcentração de renda. Sem diálogo, evapora a possibilidade de coesionamento em torno de objetivos comuns. Zerado o capital social, vale tudo. Dinamismo, criatividade, eloqüência, carisma, honestidade, coragem, as qualidades pessoais de Brizola talhavam o perfil ideal de mediador de um pacto social. Aplicado com êxito por Vargas a ele mesmo, o projeto trabalhista fermentava nas urnas.
Contra ele, foram disparados os ardis maquiavélicos de desqualificação de lideranças populares consideradas perigosas. O principal foi particularmente eficaz: o medo. Antes e depois de 64, os sentimentos de insegurança da classe média foram atiçados, na construção da imagem de um político radical que age sem medir as conseqüências.
Não importou salvar uma geração da ignorância com escolas à vontade; não valeu uma reforma agrária sem turbulência; não contou um estado voltando a ter energia e comunicações para crescer. A classe média desempatou o jogo a favor do latifúndio e das transnacionais e os militares entrarem em cena. Ao voltar do exílio 15 anos depois, Brizola encontrou a vaga de bicho-papão à sua espera. Parceira favorecida do autoritarismo, a grande mídia aproveitou a ausência de Brizola para trocar de pele mas não de veneno. Assim que os militares repassaram o poder, a grande mídia escalou-se para arbitrar o jogo político entre os Brasis. Aguardada ansiosamente por longos anos, a informação limpa da democracia perdeu o lugar para a opinião de cartas marcadas do mercado (..."agem como empresários dos homens de negócios"...)
Com o fantasma do medo sempre a postos, a grande mídia impôs o condicionamento das perspectivas sociais e políticas ao faturamento dos negócios. Dia a dia, o fundamentalismo econômico foi estendendo meticulosamente o tapete vermelho ao séqüito de prepostos do Consenso de Washington.
As notícias euforizantes de um investimento externo atrás do outro contrastam com as opiniões acabrunhantes intimidando para mais um sacrifício interno. Umas naturalizam, outras legitimam a periferização econômica e social do Brasil. "É preciso piorar para depois melhorar"(2) receitam “os eunucos que voltam do exterior com a mente lavada, com a garantia de empregos generosos, para administrar verdadeiros escritórios de contabilidade das perdas internacionais". Enquanto houver uma casca de capital nacional os leiloeiros continuarão batendo o martelo com a concordância monomaníaca da grande mídia de olho na percentagem da comissão. Não tem fundo o saco por onde escoa de mão beijada a poupança compulsória de longos anos de milhões de brasileiros.
Quê ninguém se atreva a arranhar a boa imagem do Brasil junto à comunidade econômica internacional, rosnam os comentadores, inoculando medo na classe média.
Overdoses de baixaria e violência na TV completam o terrorismo político dos jornalões e revistonas na fabricação de passividade, o princípio ativo da inércia social. A cumplicidade da grande mídia na privatização inviabiliza a articulação da resistência à ofensiva neoliberal. Única liderança nacional a opor-se à leiloagem, Brizola constata que poucos se atrevem a juntar-se a ele por temerem o escárnio da grande mídia. Com a franqueza de sua genialidade, Darcy Ribeiro, um dos grandes pensadores do Brasil, reconhece: "De 54 para cá perdemos todas as batalhas". Fiel a seu temperamento estóico, Brizola segue rijo na luta.
Sozinho em meio à recepção pirotécnica da grande mídia ao desembarque do neoliberalismo, Brizola clama em vão em nome do futuro do Brasil. Não lhe podem cassar essa honra, nem ele tem o direito de se render. Guiado pelos fios da História, adverte para as conseqüências sociais da quebra da espinha dorsal da economia: "O que vão fazer os nossos adolescentes? Amanhã, os jovens se levantarão porque são tratados com a violência do desemprego." Seu desabafo pungente bem que poderia ser incorporado à Carta Testamento: "Quem trair o povo brasileiro está sujeito à maldição!"
Exemplo de
intolerância
da grande mídia
Quando se dissiparem as trevas da era obscurantista, os historiadores ficarão perplexos ao revolverem as injustiças torpes cometidas contra Brizola. Será fácil entender então porque disse “não posso terminar minha vida pública como se fosse um vilão”. Sem nenhuma acusação à sua integridade moral e livre da suspeita de perseguição a adversários, ele foi vilanizado exclusivamente pelas idéias que levou à prática e por outras que certamente realizaria se fosse presidente. Eram perigosas demais “às elites que preferem se aliar aos interesses de fora do país do que a seu próprio povo”.
A obsessão na desmoralização de Brizola comprova a truculência e a insensibilidade da grande mídia em relação às questões sociais e ao desenvolvimento do país. Truculência como meio de impedir o debate de alternativas econômicas e insensibilidade com o drama de sobrevivência dos excluídos. Era preciso abafar a voz e desvalorizar as iniciativas que levantavam esperanças de uma vida digna e avivavam o orgulho de ser brasileiro. Povo e patriotismo, palavras proibidas nos textos jornalísticos – são consideradas sinônimos de breguice e jequice.
Contra a mistificação incessante da História, agora sem ele, os trabalhistas autênticos precisam ser heróicos na defesa de sua memória. É um compromisso com as futuras gerações, privadas de ouvir dele mesmo a verdade sobre os acontecimentos de 64. “Podem dizer e fazer o que quiserem contra nós, mas gente de vergonha na cara nunca fica quieta quando é questionada”.
Um manifesto de coronéis apeara Jango do ministério do Trabalho, por haver dobrado o salário mínimo congelado nos cinco anos do governo Dutra. Coronéis zelam muito por contracheque folgado mas acham um escândalo o trabalhador levar um quilo a mais de feijão para casa. E o que coronéis têm a ver com o salário mínimo? Crime de insubordinação, quebra da sacrossanta disciplina.
Com a própria vida, Vargas consegue brecar o golpe, mas não o golpismo pregado diariamente pelos jornalões. Na Legalidade, na coragem e no gogó, Brizola nocauteia os golpistas mas fica marcado para sempre. Queriam que Brizola recepcionasse os generais na rampa do Palácio do Planalto? Tentou, como era de seu direito, contrapor-se de todas as formas ao radicalismo golpista. Na revanche dos vencedores, a grande imprensa tatuou-lhe a imagem com o estigma infame. Alvo permanente do radicalismo social contra os pobres, nele foi fulanizada por gerações a discriminação dos que acreditam no Brasil e confiam nos brasileiros.
Radicalismo é o encobrimento premeditado do apartheid simultaneamente à execração de quem luta contra as causas da desigualdade, a tática pérfida da mídia.
Rebeldia
imperdoável
O menino pobre do grotão gaúcho, órfão de pai, engraxate e carregador de malas, que aos 37 anos chega ao governo do estado bem que poderia ser o exemplo, cantado em prosa e verso, de mobilidade social. Era a prova viçosa de como é possível construir um destino glorioso sobre as agruras da penúria. Ele tinha, porém, a consciência de que milhares de outros garotos iguais a ele não contariam com a mesma sorte. O garoto solitário que diariamente se empoleirava no muro para espiar o recreio teve a sorte de ser acolhido pelo diretor do colégio, o pastor metodista Isidoro Pereira. O gesto de caridade desvenda um destino incomparável. Aos 29 anos, trabalhando e estudando em Porto Alegre, já é o deputado da escola para todos.
Logo percebe a necessidade de outras molas sociais indispensáveis a uma vida melhor aos deserdados, ciceroneado pelo pensamento de Alberto Pasqualini e encara as críticas como reação natural dos que nunca precisaram se preocupar com o futuro.
Assombra-se, no entanto, na morte de Getúlio, com a estranha identidade de linguagem dos grandes jornais e os grupos internacionais contrariados pelo presidente. Na crise de 64, a diabolização de Jango veste batina importada enquanto o fogo do golpismo incendeia os editoriais. No exílio, Brizola rumina a origem das aberrações que infestam o noticiário e tem o estalo clarividente: a grande mídia se engajou de corpo e alma na luta social. Não se trata apenas de má vontade em relação a um protagonismo político de desamortecimento das massas (sempre temidas) para com seus direitos de cidadania. É guerra, surda, ardilosa, fingida, mas é guerra.
Em 64, a grande mídia ingressou para não mais sair do campo da luta social, com prerrogativas autoconcedidas de policiamento do pensamento e de criminalização dos movimentos populares. Desde então, não recua dessa posição extremada, mirando no horizonte de consumação do apartheid social. É essa grande mídia, equipada com censura própria em substituição à dos militares e detentora do monopólio da palavra que, na volta do exílio, tenta perpetuar a tatuagem maldita de radicalismo.
Nunca, em nenhum momento, Brizola manifestou simpatia pelo comunismo. Era detestado, preconceituosamente, pela cúpula gaúcha do partidão. Nos debates acadêmicos, impressiona-se com o dogmatismo dos comunistas e a arrogância dos filhotes da elite. Conscientemente, ruma na trilha do trabalhismo, para ele o caminho mais realista para o desenvolvimento com justiça social. Em dificuldade para “fichar” Brizola, a grande mídia recorre aos pistoleiros de aluguel de grife. A habilidade em encontrar defeitos em Brizola torna-se quesito de ascensão nas editorias políticas. Famosos nomes do jornalismo devem sua carreira ao modo esperto com que camuflaram o direitismo nos ataques a Brizola. Malhavam Brizola inclusive sem citá-lo, em artigos que desancavam as “fantasias” nacionalistas. Brizola era a única liderança nacional assumidamente nacionalista.
Enrijecido pelas provações do exílio, Brizola retorna sabendo do combate desigual à sua espera. Graças às inovações tecnológicas, a grande imprensa havia se transformado em grande mídia, um complexo poderosíssimo de amestramento de vontades e desejos e de viabilização de negócios. E a grande mídia, habilitada de mil e uma maneiras, brutas ou sutis, a atingir seus desígnios, se preparara para executar o veto das elites ao sonho de Brizola. O exílio era temporário, a cassação perpétua. A capacidade de Brizola de sobreviver à sistemática execração pública é exemplo ímpar na história política.
A grande mídia por trás
da recepção hostil
Na sua volta, a oposição consentida ao regime autoritário, que excluíra Brizola do projeto original de anistia, refuga as suas concepções sobre um projeto de governo para o país. O colunismo político se encarrega de promover o antibrizolismo.
No acordo de Tancredo Neves com os militares, de passagem de poder, há um capítulo secreto, guardado a sete chaves pela grande mídia, a data das eleições diretas à presidência. Elas demoraram cinco anos para dar tempo de “trabalhar” a cabeça da classe média, em traição aos milhões de brasileiros que clamaram por “Diretas Já” nas ruas.
A perda da sigla PTB na Justiça Eleitoral nega-lhe o direito de usar o distintivo icônico do trabalhismo. “Não esperávamos, ao voltar do exílio, tanta gente de estilete contra nós”. Ganha o governo do Rio pulverizando uma conspiração eletrônica (Proconsult). Mal assume, o Corcovado treme com a reação à descoberta de uma arapuca milionária, o monta-desmonta anual das arquibancadas do Carnaval. Sem querer e sem saber, havia tocado num dos feudos de corrupção da elite carioca, dos tantos que depois viriam à tona.
Até a noite de inauguração, o Sambódromo esteve sob suspeita de desabamento no noticiário de O Globo. Os CIEPs foram criticados pelo custo e ignorados na sua função principal. Afora Paulo Freire, outro maldito, nenhum educador de renome pergunta em público quanto custa deixar as crianças ao desamparo. Os morros lata d’água na cabeça ganharam encanamento, reservatório, luz e creche, mas isso não era notícia. O critério de notícia é um dos estratagemas da grande mídia para expurgar as informações indesejáveis
Por onde passa, Brizola pisa em ninho de escorpiões. Há sempre uma ferroada dolorida de plantão, caso da apresentadora de TV mato-grossense, na campanha de 89. Ele não esperava a baixeza da pergunta se havia fugido do Brasil vestido de mulher. Responde com uma grosseria e no dia seguinte pede desculpas. A velhacaria da grande mídia não tem limite na hora de picar.
Brizola lança mão dos recursos do partido para publicar o que os jornalistas ouvem e os jornais censuram. No espaço comprado a preço de anúncio – o tijolão – denuncia os equívocos de sucessivos governos e os interesses por trás. Um jornal gaúcho excluído da publicação por medida de economia proíbe qualquer notícia sobre ele. Outro jornal gaúcho, em série de perfis dos candidatos a presidente em 94, distorce o diálogo de um encontro com Roberto Marinho e nem se refere às suas realizações.
A TV Globo banaliza a violência na programação de entretenimento e O Globo responsabiliza o governador pela expansão da criminalidade. O ovo da serpente da violência choca longe dos lugares batidos pela polícia. Brizola recorre a pesquisas internacionais sobre a influência da TV no comportamento social. A intelectualidade desperdiça a oportunidade de debater, sinal de que trocou a liberdade de pensamento por 15 minutos de fama.
Vale tudo. A TV Globo invade vergonhosamente seu espaço familiar para desonrá-lo como pai. A justiça concede a Brizola direito de resposta no Jornal Nacional. Na capa, O Globo exibe foto de uma boca de fumo tapada de cartazes de Brizola pouco antes de iniciar a campanha de 89. Ele protesta contra o jornal. Na noite do mesmo dia, apresentador paulista de TV, famoso por seu bordão, solidariza-se com seus colegas cariocas. No dia seguinte, fica provado que o cenário da foto não passava de uma armação da polícia.
Em 2001, conhecido rosto de TV de São Paulo vai a Brasília promover livro recém-lançado sobre a rebelião cívica da Legalidade que completava 40 anos. Em horário quente da TV Globo local, apresentado por outro afamado comunicador, voz que ecoa diariamente também nas rádios, ninguém menciona o líder do movimento. A quem viu e ouviu o programa, a Legalidade foi um fenômeno político misterioso, tipo fogo fátuo, acendido por uma mula sem cabeça. No apagamento vil dos feitos de Brizola não há limites na truculência para com o telespectador, ouvinte e leitor. Não só com ele. É a sina dos patriotas. Ao morrer, o centenário jornalista Barbosa Lima Sobrinho foi ligeiramente lembrado como democrata na Globo News, sem nenhuma referência à pregação nacionalista de toda sua vida.
No anátema ao nacionalismo, a grande mídia disfarça sua condenação visceral ao patriotismo, sentimento capaz de acender energias insuperáveis em um povo. Disfarça mas não tem como esconder o ofício de correia de transmissão de pensamento colonizado.
Cumplicidade da
grande mídia
na fratura social
Nunca antes disparadas de modo tão escancarado e aberto a quem quisesse ouvir e entender, as acusações de Brizola ricochetearam na muralha da desinformação da grande mídia. A academia, que legitima o jornalismo excludente, silenciou. A classe política comemorou furtivamente o “quixotismo” que privaria Brizola dos poucos espaços que lhe restavam.
Abismado com a indiferença geral ante uma questão essencial à democracia – só a informação plena gera cidadania – Brizola chegou a cair em devaneio. No programa Câmera 2 (TV Guaíba) imaginou um grande jornal rompendo com o pacto de controle de informação. (“talvez a Folha de São Paulo”). Não se conformava em falar apenas à sociedade favorecida pela desinformação e por isso nenhum pouco interessada em esmiuçar a caixa preta da grande mídia.
A fratura social que o trabalhismo nacionalista se empenhava em evitar, cavando canais de ascensão aos setores excluídos, já estava em franco andamento, rumo ao apartheid.
A serviço da exclusão, o obscurantismo da grande mídia inviabiliza a integração entre as várias sociedades e força espaço político “às reformas para trás, que buscam manter o retrocesso e a acumulação de riquezas, em vez de democratização”. Brizola não exagerou no libelo em que decifra a cumplicidade da grande mídia na trama de “transferência do patrimônio nacional a grupos privados”. Da aterradora conclusão – “no fundo o que querem é uma ata decretando o fim da existência da nação” – aprende-se que ela não tem como livrar-se da sinistra compulsão antipovo e antipátria. Os negócios patrocinados pela grande mídia exigem a dissolução dos testemunhos perenes da vontade nacional, que ela substitui por uma opinião pública fajuta.
“Observem os meios
de comunicação e no
que eles se transformaram”
Longe ou perto, contra Brizola a grande mídia recorreu, uma após outra, ao sortimento de maldades reservado a quem tenta organizar a vontade dos excluídos. Às vésperas de voltar, as manchetes lhe atribuíram provocações aos militares. Encurralado ao longo de 25 anos, aos poucos acabou isolado no tabuleiro político. Com lucidez e bravura, no entanto, arrancou de seus perseguidores uma vitória insuperável, que em dia bem próximo será plenamente reconhecida.
Às custas de seu sacrifício, a falta de ética da grande mídia foi flagrada publicamente. Não há corporação tão poderosa e desprovida de autoridade moral para ditar o certo ou o errado. Grupo de pressão inigualável de interesses políticos tenebrosos, subliminarmente ela se move no sentido da desintegração social. Cada grau de descoesionamento, o ponteiro da crise social, exibe as digitais da grande mídia como co-responsável.
Os números atestam que a força da grande mídia resulta da sua desimportância social, do seu descomprometimento com o Brasil plural, heterogêneo e desigual. Os 7 milhões de exemplares/dia dos grandes e médios jornais revelam o diminuto público a que atende e serve. A tiragem de Veja – mais de um milhão de exemplares semanais – dimensiona com precisão a faixa de empresários, executivos e profissionais, sócios do seleto clube dos formadores de opinião de direita.
Em poucas e contundentes frases, Brizola identificou o aparelho ideológico de dominação enrustido na parafernália onipresente e despótica. Entregou aos pesquisadores da comunicação social a tarefa de devassar os propósitos nefastos e as técnicas espúrias de racismo social.
A salvo de qualquer controle e com o poder de pulverizar questionamentos, o monopólio da informação interdita o debate para hierarquizar o pensamento de acordo com a estratificação social em castas. Simultaneamente, tenta impor um padrão colonizado de subjetividade íntimo de um modelo econômico subalterno. Moldado para gerar inferioridade abaixo da linha da classe média, o padrão estético da grande mídia opera em sintonia com a mentalidade subserviente em economia. Brizola ensinou a pensar grande o Brasil e a grande mídia condiciona a pensar pequeno. Sob o controle autoritário da informação, o brasileiro não conhece seu país e não reconhece a si mesmo, inconsciente de sua dignidade de cidadão.
O resultado trágico do seqüestro e corrupção da informação essencial estoura no inconsciente coletivo, com a quebra do interesse pelo conhecimento. Pesquisa nos bairros mais infestados de dengue em Recife, revelou grande número de moradores que sequer sabiam o nome da doença que haviam tido. Na dúvida, a legítima defesa instintiva contra a mentira arrasta consigo a rejeição da verdade. Intocável e infame, o sofisticado aparato de desinformação tritura à vontade os retalhos de consciência da nacionalidade, na premeditada produção de alheamento e dessensibilização do sentimento de pertencimento a um mesmo destino.
“Dente de jacaré,
couro de jacaré,
olhos de jacaré...”
Do pavilhão de rebeldes perigosos, Brizola foi transferido à galeria dos malditos incuráveis por seu estalo de clarividência. Ele percebeu que a grande mídia opera a fabricação de consentimento à venalização dos recursos físicos e a depreciação do patrimônio imaterial do Brasil, por meio do esvaziamento da consciência cívica dos brasileiros. No vazio, ela injeta o determinismo da submissão e da separação animosa dos brasileiros.
Brizola não lutou em vão contra a sinistra corporação que distorce a vontade, degrada consciências, perverte sentimentos e criminaliza desejos dos brasileiros. Deixou-nos a base de compreensão das engrenagens iníqüas da mentira e a granítica esperança de que o Brasil vai dar certo. Repetia sempre: “Antes de tudo, confiamos na lucidez do povo brasileiro”.
Nos bustos e estátuas que um dia imortalizarão a memória do homem público visionário da justiça social e da soberania nacional, as placas devem guardar espaço a uma homenagem posterior: “Patrono da luta pela democratização da informação no Brasil”.
Alvo diário de discriminação por ser o guardião fiel do legado libertador de Brizola, seu partido não pode esquecer, nos momentos difíceis, este conselho:
“Observem os meios de comunicação e no que eles se transformaram: o requinte da técnica, a máquina gigantesca que existe pelo mundo. Os centros de poder passaram a utilizar essas técnicas. Para mim, o chamado neoliberalismo nada mais é que o batismo, o verniz colorido com que encobriram o mesmo sistema de dominação e exploração dos povos. Eu chego a dizer: isto tem dente de jacaré, tem couro de jacaré, tem olho de jacaré, como não é jacaré? Como não é colonialismo?” (Palestra no Centro de Ensino Unificado de Brasília sobre A Inserção Soberana do Brasil no Mundo em Globalização, em 30/04/97)
Brizola vive!
1 – Jurandir Leite, presidente do Sindicato dos Telefônicos
2 – Declaração de Maílson de Nóbrega, ex-ministro da Fazenda, segundo o jornalista Luís Nassif.