No último reveillon de sua vida, Brizola recebeu os familiares e alguns poucos amigos. Banguense, como eu, ele me confidenciou algumas amarguras, mas ainda conservava muitas esperanças.
Aos oportunistas de hoje, que querem trocar as bandeiras de Brizola por certas pesquisas
“Eu vi
Vi um homem chorar porque lhe negaram o direito de usar três letras do alfabeto para fins políticos. Vi uma mulher beber champanha porque lhe deram esse direito negado ao outro.
Vi um homem rasgar o papel em que estavam escritas as três letras, que ele tanto amava. Como já vi amantes rasgarem retratos de suas amadas, na impossibilidade de rasgarem as próprias amadas”.
Carlos Drummond de Andrade
(Jornal do Brasil, 15/05/80 )
Lembro-me como se fosse hoje: golpeado pelo general Golbery, que lhe tirou a sigla histórica do PTB, Brizola perdeu boa parte dos políticos que se haviam juntado a ele quando do retorno do exílio. Teve que correr contra o tempo para fundar uma nova legenda trabalhista, conseguir organizar o PDT em no mínimo 11 Estados e ter condições de apresentar alguns nomes como candidatos, numa eleição em que a televisão e o rádio ainda estavam sob o império da “Lei Falcão”: os candidatos tinham uma foto e o nome no horário eleitoral, mas não podiam falar.
No Rio de Janeiro, já estava “tudo dominado” quando ele ofereceu seu nome como candidato a governador, procurando principalmente reagrupar aqueles que viam nele a única esperança de uma verdadeira mudança no Estado dominado pelo MDB chaguista, que era uma espécie de quinta coluna da ditadura no partido “oposicionista”.
No início do ano, só se falava em dois nomes: Miro Teixeira e Sandra Cavalcanti, que tinham, inclusive, participado de um debate na “Tv Globo”, apareciam nas pesquisas como os melhores posicionados. Mesmo com seu nome já na boca do povo, Brizola não passava dos 2%. Sandra chegava perto dos 40%
Maioria da esquerda vacilou
Isso levou até políticos com trajetórias de esquerda a optarem pela candidata, que se apresentava como o nome da mudança, com o perfil conservador associado ao seu histórico ao lado de Carlos Lacerda.
Como não aparecia nas pesquisas, Brizola também não conseguia recursos para a sua campanha. E para impedir sua vitória, a ditadura concebeu um plano que ia desde o voto vinculado, pelo qual você só podia votar nos candidatos do mesmo partido, até a terceirização da apuração, a cargo da Proconsult, já com a missão de fraudar a apuração.
Além de perder alguns trabalhistas históricos, Brizola sofreu com a decisão de Lysaneas Maciel, que ajudou a fundar o PDT, passar para o PT, pelo qual se candidataria com “inocente útil” de uma trama para dividir os votos populares, parte da qual, como o antigo Partido Comunista, o PC do B e o MR-8, ainda se abrigava no PMDB, ao lado de Miro, dentro do que alguns intelectuais oportunistas chamaram de “arco da sociedade”.
Além do seu “exército brancaleone” que fazia rifa para ajudar na campanha, Brizola só teve a adesão de Luiz Carlos Prestes e de alguns antigos emedebistas, como Délio dos Santos e José Frejat.
Dos trabalhistas tradicionais, contavam com Marcelo Alencar, Doutel de Andrade e Bocaiúva Cunha.
Em 1982, o pleito seria realizado em 15 de novembro. Na quase totalidade, os candidatos a deputados e vereadores, entre os quais me incluía, não tinham mandato. Sobravam, então, os deputados José Maurício e Délio dos Santos, e vereadores Clemir Ramos e José Frejat.
Quase ninguém tinha estrutura. Quem realmente ajudou foi José Colagrossi, que seria eleito deputado federal, e Hugo Moreira, cujo irmão, Hélio, elegeu-se estadual.
Não precisa dizer que toda a imprensa e a maioria dos intelectuais, como Chico Buarque de Holanda, desprezavam Brizola, um nome tido como inviável.
A coisa só começou a mudar com dois debates no programa “O Povo na TV”, do SBT. Só então, o povo ficou sabendo que o deputado mais votado da Guanabara em 1962 (com 1 em cada 4 votos) disputava a eleição por um partido quase desconhecido.
Foi a partir de setembro que Brizola começou a chegar perto, embora os institutos de pesquisas continuassem jogando lá em cima os nomes de Sandra e Miro Teixeira, com o ex-comunista Moreira Franco, candidato oficial da ditadura, sendo inflado no interior.
Brizola na cabeça
Naqueles últimos 90 dias de campanha, Bocaiúva Cunha e Wagner Teixeira tiveram a idéia do slogan que ganharia a simpatia das massas populares: BRIZOLA NA CABEÇA.
O PDT se endividou, mas mandou fazer milhares de bonés vermelhos com essa frase. Ao mesmo tempo, um cartaz pequeno mostrava os cinco candidatos: “É Brizola contra todos e todos contra Brizola”.
Foi exatamente no dia 12 de outubro, na histórica caminhada de Brizola pela comunidade do Jacarezinho, que ele passou a ser visto como o “furacão Brizola” e ganhou matéria de capa da revista ISTO É.
A partir daí, não havia pesquisa que pudesse induzir o povo. As forças conservadoras abandonaram Sandra Cavalcanti, que ganhara a legenda do histórico adversário do lacerdismo, o PTB, e passaram a descarregar seus recursos em Moreira Franco, que tinha como principal padrinho o ministro Mário Andreazza, pretendente a sucessor de Figueiredo no PDS (antiga Arena).
Já em novembro, só restava ao sistema acionar a Proconsult, a empresa contratada pelo TRE do Estado.
O esquema da fraude deveria funcionar na etapa de totalização final dos votos, quando, em função de um cognominado "diferencial delta", os programas instalados nos computadores da Proconsult subtrairiam uma determinada porcentagem de votos dados a Brizola transformando-os em votos nulos, ou promoveriam a transferência de sufrágios em branco para a conta do então candidato governista, Moreira Franco.
Quem primeiro levantou a lebre foi a Rádio Jornal do Brasil, através dos jornalistas Procópio Mineiro, Pery Cotta e Francisco Pedro do Couto (nosso colega da TRIBUNA) que se especializou em análises de tendências eleitorais.
Nessa hora, com o apoio dos garotos da Juventude Socialista do PDT, o então desconhecido economista César Maia montou ma precária estrutura de operação com alguns computadores na Praia de Botafogo, esquina de Rua Farani. Os fiscais do PDT pegavam a via da apuração destinada a cada partido e os garotos levavam, muitas vezes de ônibus, até o centro de totalização do partido.
Já na pesquisa de boca de urna, que não pode mais ser usada para outros fins, o IBOPE e a Globo admitiram a vitória de Brizola, com 5% na frente de Moreira Franco, o segundo colocado. Mas a Proconsult agia conforme o combinado: divulgava primeiro os números do interior, onde Brizola teve apenas 8% dos sufrágios, enquanto “bombava” na Baixada, na Zona Oeste do Rio e nas comunidades pobres.
Para vencer a conspiração, Brizola teve que convocar uma coletiva com a imprensa internacional e contou, para isso, com uma inesperada e decisiva manifestação de Miro Teixeira, que, no segundo dia, reconheceu sua vitória.
Essa epopéia que vivi, sacrificando minha candidatura a deputado estadual para fazer a campanha de Brizola na Zona Sul, onde eu fundara a primeira associação de moradores da cidade e ele ia mal, foi decisiva para a definitiva retomava do regime de direito.
Brizola, o patinho feio das pesquisas, passaria a ser o grande referencial de nossa história contemporânea: a partir daí, tudo o que as elites faziam só tinham um objetivo: impedir que ele chegasse a Presidência da República.
E para a infelicidade do povo brasileiro, nessa, o sistema venceu.